quarta-feira, 31 de outubro de 2007

CARTA A MEU PAI

A casa estava triste, o dia estava chuvoso, não havíamos preparado nada de especial, bolos ou tortas. Uma residência no inverno em pleno inverno. Escura e discreta diante da vizinhança barulhenta entre tiros e fogos de artifício. Meu pai estava doente. Tudo para dar errado. Tenho 22 anos, mesmo assim não me lembro bem. Meu pai há muito separara e minha mãe partiu para uma viagem sem previsão de retorno. A memória guarda o essencial e elimina as datas. A memória é também uma espécie de imaginação. Sempre que a casa desanimava, eu e meus irmãos encontrávamos uma força de nossa própria infância. Uma coragem que pouco conhecia. Uma coragem adulta que os adultos esquecem por indiferença ao mundo.

Deu vontade de fazer uma festa para o papai, já que todos os dias ela havia preparado nosso contentamento. Nem aí para o Papai Noel, dia das crianças, brinquedos e suas promessas. Pra que precisamos de guarda-roupas se não temos roupas. Arrumaria a mesa, colocaria velas, sopas, compraria sorvetes no mercado e um chocolate dividido em barras. Ele parecia estar triste e eu não perguntaria. Minha educação não permite perguntar no momento em que a sensibilidade sabe a resposta. Seu cansaço agravava o rosto. Vontade de dar um abraço nele, escolher sua roupa, nunca escolhi suas roupas. Colocar em seu pescoço o seu melhor escapulário. Ampliar seus olhos com as nossas bocas. Aos poucos, ele recuperaria o riso, o tom. O mesmo riso de quando ele me buscava na escola, surpreso com um ventre amadurecido em filho. Cantaríamos a noite inteira. Se fisesse silêncio agora, ainda escutaria nossas vozes misturadas ao barulho das louças. A gritaria incontida, o abraço interminável como um corredor de arbustos. Mesmo sem presentes, naquele noite poderíamos aprender que não precisamos de muito para celebrar. Basta improvisar com o que somos, não com o que temos.

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