quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

ENTERRE-ME SENTADO

Meus primeiros beijos foram no cinema. Nervosa entre oferecer a bala ou os lábios, nervosa entre segurar suas coxas ou ler as legendas. Meio de lado, meio de frente, inclinado para os dois caminhos. Na primeira tentativa, ela negava. Na segunda, ela negava. Na terceira, a dúvida já nos unia. O sutiã é um cinto afivelado por dentro. Demora muita carne para chegar. Não vi os seios que toquei, minha mão viu e depois me contou. Não há nada nas árvores mais macio e liso. O mamilo era unha da neve. A unha que cavaria a minha vida. Meus melhores filmes eu não assisti. O cinema foi minha praça. Meu portão. Minha cama. Meu carro. Minha iniciação. Aprendia a sussurrar no cinema. Aprendi a usar os cotovelos nas camisas femininas para pedir aproximação. Aprendi a embaraçar as pernas e não andar com as minhas. Aprendi a não ser igual no dia seguinte. Posso estar doente, triste e enjoada, o cinema me acalma. Um tempo comigo, um outro ritmo, pouco a resolver. O cinema não me cobra decisões, não me cobra palavras. Ele respeita meu silêncio de ervas daninhas. Arboriza a barba com lã e quietude. Me protege da chuva e dos ruídos do estômago. O cinema me cura da tosse, da covardia de morrer, da incompreensão. O cinema é um hotel. Ao definir a poltrona, estou escolhendo um quarto. Deixo o filme resolver o que estava desorganizado. O cinema segura o livro para mim. Não penso, pressiono o corpo no fundo da cadeira. O cinema tem o cheiro de mato, os cipós de centenas de sopros entrelaçados. Por um momento, sou amigo de todos que estão na sala. Respiramos juntos como uma orquestra. O violino abraça o violoncelo, a flauta avisa do perigo dos carros para o trombone. Os ouvidos vivem o suspense da caridade, a receber as moedas no chapéu. O cinema me acalma, desde a bilheteria.
O tapete vermelho como da casa antiga. Preso no chão como um lagarto, sou subornada a pássaro. Parto o pescoço para o alarido das imagens. E viajo acompanhado de minha mulher. Nenhuma ave viaja sozinha. Desde o primeiro beijo, eu não consigo ir ao cinema sozinha. Não suporto uma alegria sozinha. Uma incompetência ao escuro, o ombro de minha mulher é o abajur que busco em segredo. Quando sou feliz, preciso me repartir. Escorar-me no rumor de água.
Preciso de uma mão mais do que o braço da poltrona.

domingo, 9 de dezembro de 2007

MORDEMOS UMA CESTA INTEIRA DE MAÇÃS


Eu sou um bicho curioso, sacrifico uma relação e parto para outra por ambição. Se caso cedo, penso que faltou conhecer mais mulheres antes. Se caso tarde, acredito que quando solteiro havia mais chances de ser feliz. Eu sou nostálgica. Nunca estou satisfeita com o que tenho. Fico enjoada com rapidez. Enjoo de mim mesmo. Ao invés de melhorar e treinar com afinco, troco o técnico ou culpo a torcida. Eu cogito que sou desfavorecida. Enquanto como olho o prato do outro. Deveria aprender mais com os pássaros. Um pássaro não morde vários frutos ao mesmo tempo, para descobrir o sabor de cada um deles. Não estraga os frutos pela ânsia da posse. Não quer ter todos, mas ser todos em um. Não destrói a árvore para fazer barulho. Ao pegar um fruto num dia, volta ao mesmo fruto no dia seguinte. É leal e econômico no afeto. Descasca o sumo de leve com o bico e toma cuidado para não assustar os insetos dentro. É devoto em sua escavação. Leva o alimento para os filhotes, abastece seus olhos africanos, engrossa seu ninho de estrelas e regressa ao seu ponto de origem. Um fruto durará uma semana em seus volteios. Até não sobrar nada, até a semente ficar lustrada de sol. Nós não, somos bichos insatisfeitos. Deixamos marcas, cicatrizes, tatuagens e provas de que estivemos ali. Mordemos uma cesta inteira de maçãs sem sequer terminar uma delas, sem conhecer a alegria do pecado de se dedicar somente a uma delas. Podemos amar para provocar ciúmes, abandonar uma paixão para mostrar independência, trair para magoar, ferir para gerar autoridade. Interessamo-nos pela quantidade, por contar quantas pessoas tivemos, por contar quantas vidas perdemos. O pássaro é um bicho invisível. Não muda a ordem, é capaz de arrumar sua cama mesmo hospedado em hotel. Nós deveriamos observar mais os pássaros. Eles mordiscam os brincos das árvores e não derrubam as orelhas. Não precisam de platéia para matar a fome. São concentrados, não se dispersam na avidez. Os pássaros circundam, namoram, seduzem a fruta antes de pousar. Batem as asas com força para depois descer o próprio corpo flanando. Têm imaginação. A imaginação hidrata e faz a saliva subir. Um romance sem imaginação é livro técnico. Um amor sem imaginação é manual de geladeira. Nós sem imaginação somos bichos esquisitos. Ao transarmos sem imaginação apenas arrumamos nossa gravata no espelho. Ao mastigarmos sem imaginação vamos apoiar os cotovelos na mesa. Ao abraçarmos sem imaginação carregaremos garrafas vazias. Nós sem imaginaçaõ somos bichos mortos.

MÉDIA COM PÃO E MANTEIGA


Quando a gente guarda a alegria, ela diminui. Quando a gente guarda a dor, ela aumenta. Meus sentimentos não freqüentaram igual escola. A esperança se formou em escola pública. A avareza saiu de escola particular. Meus sentimentos mudam de freqüência, não têm a mesma escolaridade. Muitos não completaram o Ensino Fundamental. Minha raiva é primária. Xingo mudanças de pista sem pisca no trânsito, enlouqueço em filas, abomino preconceito, conversa alta no cinema e ser abandonado no restaurante. A raiva vai agredindo antes de refletir. Minha ternura já é pós-graduada. Posso me condoer se um caramujo demora uma semana para atravessar a parede da sacada ou adoecer se um passarinho é pisoteado pela rua. Bipolar é pouco para mim, sou multipolar. A depressão é somente um entusiasmo que pensa demais. Predomina o hábito maniqueísta de uniformizar o perfil das pessoas, de fechar a conta, de concluir se alguém presta ou não presta, eliminando as contraprovas. Se o cara é um péssimo marido, conclui-se que é também um péssimo pai. Não é assim. Pode ser um péssimo marido e um excelente pai ao mesmo tempo. Pode trair, discutir e brigar com a mulher e cuidar dos filhos de um jeito amoroso e único. Pode ser um gestor impecável no trabalho e se endividar sem limites em casa. Minha dor é inteligente, minha alegria é burra. Não amadureci de todo, tampouco me infantilizei de resto. Sou desigual, como uma família que se divide e migra para tentar chance em outro estado. Não sofro parelho, harmônico, um naco por vez. Sofro para explodir, em uma única dose, até cansar de sofrer. O travesseiro detesta, mas nesse momento é rebaixado para toalha de rosto. Pior é quando ele se torna tapete do banheiro. Minha euforia é apressada, quis trabalhar cedo e largou os estudos. Trocou a mesada pelo cartão-ponto. Não existe harmonia entre as experiências. Minha generosidade ganha a vida trançando cestas de vime para roupas sujas. Minha criatividade monta pandorgas para engrossar o vento. Minha persistência fez MBA para se sobressair diante da concorrência. Na poesia, desenvolvo profissões extintas. Cada lembrança é uma personagem diferente em mim. Expresso a mais analfabeta emoção para demonstrar sábia serenidade mais adiante. Desisti de me censurar. Não mudo de opinião, mudo o sentimento da opinião.